quarta-feira, 14 de julho de 2010

Vidas Clandestinas - Diferentes olhares sobre a prostituição

Essa foi a reportagem que apresentei como trabalho final da disciplina Observatório da Mídia, semestre passado. Acho válido publicá-la. Vale lembrar que os nomes dos entrevistados foram alterados, a fim de proteger suas identidades

Entardecer no centro de Taguatinga, uma das maiores cidades do DF, as lojas começam a fechar, as paradas de ônibus lotam de trabalhadores querendo ir para suas casas. Na cidade, o trânsito intenso e barulhento está cheio de mais trabalhadores voltando para suas residências ao final do expediente. Final de expediente para muitos, o início da noite é só o começo da jornada de trabalho para tantos homens e mulheres.

Há quem diga que é a profissão mais antiga do mundo. No entanto, o universo da prostituição é muito mais delicado do que o de ofícios ordinários. A profissão coexiste entre o legal e a ilegalidade e esses profissionais precisam lidar diariamente com conflitos sociológicos e uma série de preconceitos.

Legalidade

Não há nenhuma documentação legal que caracterize a prostituição como crime, homens e mulheres possuem o direito de fazer com seus corpos o que desejarem. O real delito é denominado lenocínio e está presente no Código Penal Brasileiro nos artigos de número 227 a 231. Esses artigos caracterizam como crime “induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem”; facilitar a prostituição ou impedir e atrapalhar que ela cesse; manter estabelecimento em que ocorra exploração sexual, existindo, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário; tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros; e promover ou facilitar o deslocamento de pessoas com o fins de prostituição, interna ou externamente ao país de origem. A pena para tais crimes pode variar entre um e dez anos, com aplicação de multa.

As casas se prostituição são crime, mesmo assim, existem muitos profissionais que preferem manter vínculo com os estabelecimentos. É o caso de Márcia∗, prostituta há quatro anos, que optou por trabalhar em um prostíbulo por sentir que o espaço lhe oferecia certa segurança. “Mesmo tendo que dividir o dinheiro, é melhor. Na rua a gente sempre acaba sofrendo algum tipo de violência e desrespeito, tem gente que xinga, joga coisa da janela do carro. Lá (na casa de prostituição) é tudo monitorado, tem câmera de segurança, não tem como o cara sair sem pagar ou bater na gente”.

Realidades

O universo da prostituição é extremamente peculiar, e abriga muitas histórias distintas. A diferença entre elas, muitas vezes, tem origem nas motivações de cada indivíduo ao entrar na profissão.

Michele, por exemplo, saiu de casa após uma série de agressões por parte do padrasto alcoólatra sobre ela e sua mãe. Uma vez fora de casa, sem emprego e sem ter onde morar, a garota viu na prostituição uma maneira de sobreviver à sua nova realidade. Hoje, não é mais prostituta. Com o dinheiro que juntou, comprou um bar e sustenta os dois filhos com os lucros do estabelecimento. Michele afirma: “não me arrependo nem por um minuto. Por mais errada que eu tenha sido, hoje posso dar aos meus filhos tudo o que eu nunca tive”.

Lucas é travesti e, antes de se prostituir, se apresentava como drag queen em casas noturnas. Quando o pai descobriu o ofício do rapaz, expulsou-o de casa. Lucas alugou um apartamento próximo à boate, o rapaz de cabelos e olhos escuros, pele morena, queixo largo e pernas e braços torneados começou a se prostituir quando o dinheiro que ganhava nas apresentações não foi mais suficiente para manter seu estilo de vida.
Jeniffer não foi vítima de violência e nem teve que sair de casa à força. Resolveu se prostituir para financiar o curso universitário de Direito, sua família não é carente mas a renda é insuficiente para bancar a formação acadêmica. Não trabalha nas ruas, nem em bordeis, seus serviços são oferecidos em anúncios de jornais para um público mais seleto, ao telefone a voz suave da garota é envolvente, nem grave nem aguda, um tom de voz envolvente, que prende o ouvinte à conversa e o leva a aceitar o que quer que ela diga. Dessa maneira, ela negocia os encontros. A garota prefere ser chamada de acompanhante.

Nas ruas
Caminhando pelas ruas do centro da cidade, o clima se torna mais tenso à medida que as horas passam. A cada esquina e escadaria, grupos de três ou quatro garotas conversam enquanto olham ao redor, procurando por clientes. Além do posicionamento estratégico e popular, as garotas do centro de Taguatinga usam roupas curtas, apertadas e decotadas. Michele, vestindo saia jeans com o comprimento pouco abaixo da linha da virilha e um top que deixa amostra o piercing no umbigo, garante que a sensualidade das roupas facilita a abordagem dos clientes, desinibe eles para se aproximar e negociar o serviço.

A grande quantidade de hotéis de baixo custo no local é um chamariz para a prostituição e para crimes relacionado ao ofício. Enquanto Michele explica a questão das roupas, olha o tempo inteiro em direção ao final da rua, a garota é vigiada a distância por um homem, calça jeans e camiseta escura. Nada suspeito se não usasse óculos escuros em pleno o anoitecer, os óculos são para olhar em segredo e vigiar a garota. A testa vinca, e Michele se irrita. Quando questionada sobre quem é o homem, responde amargamente: “ele acha que é meu chefe, mas não é nada disso. É ele quem me arranja os quartos, só que pega boa parte do dinheiro. Mas é o que pega menos desses que tem por aqui, por isso fiz acordo com ele, é melhor do que ter que fazer no meio da rua. Só que ele passa a noite me vigiando, para eu não poder ir para outro lugar. Se não ele perde a grana dele, né?’. A equipe que conversava com Michele se aproxima do local onde o homem está parado. Quando nota a movimentação, tranca a porta da escadaria que dá acesso ao hotel e se esconde, não quer se complicar.

Do outro lado da rua, Júlia afirma ter 19 anos, o rosto com traços delicados e infantis denuncia a menoridade, nem mesmo o profundo decote em “V” evidenciando seios fartos e o short curto expondo boa parte do corpo de mulher consegue mascarar completamente a infância estampada no rosto de menina. Garante que o rosto de infantil não traz problemas, “se tiver corpo de mulher, ninguém nem vê. A maioria nem olha na nossa cara mesmo”. Três policiais militares passam ao lado de Júlia, nada fazem. Nenhuma identificação é solicitada, a garota simplesmente é ignorada.

Moralidade
Não existe respaldo legal que afirme a prostituição como ato criminoso. No entanto, há quem veja a profissão como uma espécie de crime moral. A professora Tânia Mara Campos de Almeida, do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), afirma que vivemos em uma sociedade patriarcal, sexista e machista, que só consegue enxergar a prostituição como uma obrigação e não como opção. Enquanto essa for a realidade da sociedade, as pessoas que se prostituem tendem a ser julgadas moralmente pelo seu ofício, são consideradas vitimas de desvio de conduta e desvalorizadas socialmente. Por esse motivos muitos desses profissionais vivem em segredo.

É o caso de Jeniffer, que se prostitui em segredo para bancar os estudos. Quando marca seus serviços de acompanhante, diz aos pais que sairá com as amigas ou que vai ao cinema. Tem medo da reação da mãe, católica fervorosa, e acredita que pode ser expulsa de casa e levar uma surra. “Quando passamos de carro perto do centro, minha mãe fica indignada, sempre fala que a prostituição é coisa de mulher vagabunda, que tem preguiça de trabalhar, por isso nunca tive coragem de contar a ela o que faço. Ela acha que eu sou bolsista, que não pago a faculdade, e que por isso não trabalho durante o dia”. A própria garota não vê com bons olhos a profissão e diz que vai “sair dessa vida” assim que conseguir se formar em Direito.

A opinião da mãe de Jeniffer é compatível com a de muitos brasileiros. Pessoas de todas as idades vêem a prostituição como uma forma de fugir do “trabalho de verdade”. Leidiane, estudante de Comunicação Social, afirma que “as pessoas se prostituem por ser mais fácil. Afinal, trabalhar é difícil, cansa. E quem trabalha precisa se submeter a situações muito chatas, é bem complicado”. Para a professora Tânia Mara, essa opinião preconceituosa sobre a prostituição somente mudará quando a profissão deixar de ser tratada como único meio de sobrevivência e passar a ser considerada só mais uma profissão qualquer. Para isso, uma mudança é necessária. Enquanto a sociedade for, essencialmente, patriarcal e sexista, não há como desassociar prostituição da vulgaridade e violência sexual.

Um comentário:

  1. Da orgulho de ver essa menininha escrevendo como gente grande... não sei até onde é utopia liberal ou não, mas de certo é que é uma condição triste (e provavelmente conclui isso pelos valores em que fui criada), mas não devemos julgar...

    Realmente é uma profissão, e pode sim vir a ser encarada em outro patamar da hierarquia social...

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